Quando eu for velha…

Mabelly Venson
3 min readJan 14, 2022

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Quando eu for velha, bem velhinha, quero morar em um apartamento com sacada no terceiro andar. Vou cultivar alguns vasos de gerânio pendente e pendurar um bebedouro com água doce para os beija-flores.

Quando eu for velha, bem velhinha, vou assar biscoitos amanteigados e dividi-los com a vizinha — mesmo que hoje eu não saiba fazê-los.

Continuarei indo ao cinema, mesmo que a diabetes me obrigue a trocar a pipoca doce pela salgada — é que sou dessas.

Quando eu for velha, bem velhinha, levarei meu pinscher para longos passeios matinais e ao chegar em casa, colocarei duas pedrinhas de gelo no seu potinho de água — e daí que hoje não goste de pinschers? Parece que é esse o cachorro que os velhos têm.

Também não terei mais paciência para dirigir um carro, então, enquanto o taxista se preocupa com o trânsito, eu ficarei prestando atenção na parte bonita do caminho.

Quando eu for velha, bem velhinha vou ligar para meus filhos todos os fins de tarde para desejar uma boa noite e depois vou beber uma dose de whisky — que é para não tomar clonazepam.

Quando eu for velha, bem velhinha, volta e meia a moça do quarto andar aparecerá para tomar um café enquanto reclama de seu namorado, e eu lhe direi, por experiência própria, que os homens não são todos iguais. Ela levará mais um livro emprestado que eu saberei que ela nunca devolverá — não porque eu vou morrer, mas porque ela nunca devolve os livros que leva.

Quando eu for velha, bem velhinha, ficarei feliz pela paixão dos novos casais, pelo barulho que as crianças fazem enquanto brincam, pelo rapaz bonito do prédio da frente que comprou um carro preto, ainda que eu tenha vontade de lhe gritar que deveria ter comprado um vermelho.

Quando eu for velha, bem velhinha, alimentarei os gatos dos vizinhos quando estes precisarem se ausentar e acharei bonitos os vasos de flores nas janelas do apartamento de cima — e daí que o síndico ache que parece um cortiço?

Quando eu for velha, bem velhinha, irei aceitar os vários convites para as festas de fim de ano — Deus me livre de não ter festas para ir.

Quando eu for velha, bem velhinha, vou presentear todas as crianças com livros e com brinquedos que façam muito barulho — só para incomodar os pais.

Quando eu for velha, bem velhinha, vou distribuir vários conselhos — mas somente para quem os pedir. Também vou ouvir a opinião dos mais jovens.

Quando eu for velha, bem velhinha, vou aprender algo novo — quem sabe russo ou mandarim?

Quando eu for velha, bem velhinha, olha só, não precisarei me preocupar em contar os fios cabelos brancos, pois eles já serão todos dessa cor.

Quando eu for velha, bem velhinha, as crianças irão me visitar — mas não serão propriamente os meus netos, seria muita pretensão minha colocar a responsabilidade da procriação sobre os ombros dos meus filhos.

Quando eu for velha, bem velhinha, vou fazer hidroginástica — porque é esse o esporte que velhos bem velhos praticam.

Quando eu for velha, bem velhinha, vou continuar rindo alto e vou ouvir pagode (ok, também duvido).

Quando eu for velha, bem velhinha, vou contar a história de cada uma de minhas tatuagens para os mais jovens — espero que isso aconteça enquanto estiver sentada na cadeira de um tatuador.

Quando eu for velha, bem velhinha, vou diariamente tomar minha taça de vinho enquanto cozinho.

E quando eu for velha, bem velhinha, já que não conseguirei colocar mais tempo na vida, tentarei, ao máximo, colocar mais vida no tempo.

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Mabelly Venson
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Written by Mabelly Venson

Abro portas e janelas e deixo ventar. Forte, sabe?

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